domingo, 9 de junho de 2013

DISCOTHEATER, de Pedro Penim

Última noite de magia
TEATRO | Tatiana Rocha
                À entrada recebe-nos um rapaz vestido de fato, diz-nos que temos de desligar os telemóveis, pede o bilhete e podemos entrar. É o segurança. Sejam bem-vindos ao DISCOTHEATER, esta é a nossa discoteca. Não dizem isto mas é como se dissessem os jovens atores ainda em formação que dançam ao ritmo das músicas altas e frenéticas que saem das colunas. Roupas casuais, meninas arranjadas, de saias e vestidos justos numa Black-box despida onde se vêm os cabos, os projetores, as paredes humedecidas - não há ilusão aqui. No fundo do palco imensas garrafas vazias de bebidas alcoólicas, na frente de palco uma linha fronteiriça que separa plateia feita com garrafas de cerveja já bebida. 
                Sejam bem-vindos à peça que vive no limite entre uma discoteca e o teatro encenada por Pedro Penim a partir dos mestres cantores de Nuremberga de Wagner e textos da autoria do encenador onde, mais uma vez e como já é habitual que acompanhe o nome, se questiona a ilusão dramática, a magia teatral, o poder do artifício, a arte, o papel do ator e o teatro em si.
                 "Sentimo-nos como se estivéssemos num sonho. Nós tivemos um sonho e mal, sequer nos atrevemos a pensar nisso, temos medo de vê-lo desaparecer do pé de nós. "- Dezanove vozes em coro, já a prepararem-nos para a terrível verdade aqui discutida: o teatro não passa disso mesmo, uma ilusão, um sonho. Acreditamos porque são todos tão novos, e estão a começar, e há neles um brilho da inocência que nos faz estabelecer um paralelismo entre esta ideia do teatro e o quanto o teatro para eles não é realmente isso, um sonho. “É essa precisamente a nossa missão: interpretar e fixar sonhos. Não haverá nada mais do que isso. Vamos contar-vos o nosso sonho matinal.”- Continuam e, da mesma maneira que nos preparamos para os ouvir podíamos estar a prepararmo-nos para em vez de jovens atores em formação assistir às performances dos atores do Teatro Praga que em 2006 levaram à cena precisamente Discotheater, ficando respondido o porquê deste trabalho: uma possível continuação do que para Penim – membro Praga, é possivelmente um trabalho continuamente inacabado.
                Por serem muitos atores em palco, são imensas cenas distintas, há uma atriz que se lamenta por já não possuir o engenho necessário para arrecadar aplausos e colar o espetador à cadeira, outra que se lamenta porque perdeu a magia - que outras duas afirmam nunca ter tido, e que sem ela não pode continuar, um homem na discoteca que usa uma rapariga como um farrapo – prometendo amor em troca de sexo, mulheres desesperadas porque descobrem a diferença entre realidade e ilusão, verdade e mentiras, intenções e ações, homens que se perderam de si próprios, homens que se matam com bebida e um coro, que revezando-se, são todos os atores em cena, salvando os que a cena privilegia. O perigo deste espetáculo era que as cenas parecessem soltas, sós, como pedaços separados de uma narrativa que tenta mas não se consegue manter coesa e unida. No entanto, aqui isso não acontece. Com uma mestria de louvar, as articulações sabem ser subtis, ora com música, ora com corridas repentinas para os bastidores que deixam o espetador só confrontado com um enorme palco vazio, ora com presenças que se esbatem para dar lugar a outros personagens.
                No entanto, a questão central só é definitivamente atirada à cara da audiência quando uma rapariga se encontra sozinha no palco e encontra naquele silêncio a oportunidade para falar. “Era este o momento”, diz ela, e deixámo-lo passar. Refere-se ao silêncio que se instalou, claro, quando nada acontecia no palco e na plateia já se começavam a mexer desconfortáveis os espetadores. Embarca a atriz então num longo monólogo que questiona as funções de atores e público, teatro e sociedade, arte e mundo, à medida que se vai despindo tanto dos preconceitos como das roupas que traz vestidas. Num assombro assombroso ao espaço de conforto do espetador, convida-o também a despir-se, a levantar-se e ir ao palco falar. Convida o público a dizer o que quiser, o que lhe apetecer. Que diz, ser tão mais genuíno do que o real. É o teatro mais real do que vida? O ator mais capaz que o Homem? Mais mártir? Menos feliz?
                O que Pedro Penim cria com DISCOTHEATER é um lugar de prazer e diversão no teatro, um memorando das razões que nos levam a fazê-lo, assisti-lo, escrevê-lo, envolvermo-nos nele. É como uma folha em branco onde são escritas as perguntas base: para que é que serve o teatro senão para me divertir? Onde é que acaba a ilusão e começa a realidade? O que é que é mais verdadeiro? E que procura obsessiva é esta pela verdade? Quem é que legitima o que é ou deixa de ser verdadeiro?
                Não há dúvida, contudo, que entre as luzes psicadélicas, coloridas, passando pelas frases projetadas que narram a ação fazendo apontamentos de falas e introdução de momentos, nomeando cenas, temáticas, até chegar à música com que se despedem estes jovens atores neste que foi o último espetáculo como alunos, que o DISCOTHEATER é o limite entre a discoteca e o teatro, entre o ser estudante e ator profissional com apenas duas certezas no fim: um dia, estes jovens foram velhos, e esta foi a última noite de magia do que para eles foi um ciclo.
                Fosse sempre o teatro assim, um lugar de discussão de ideias tão capaz e prazeroso.
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Maio de 2013 | Auditório Balleteatro

WILDE, da mala voadora e Miguel Pereira

Nem todos os homens vestem calças   
TEATRO | Tatiana Rocha

Junta-se uma companhia de teatro e um coreógrafo e fica-se com um espetáculo de teatro selvagem, desenfreado, wild(e). Um espetáculo – que como de resto afirmam os próprios criadores – de teatro de repertório, onde a repetição encontra um lugar para existir. Um retorno histórico às estantes de Oscar Wilde repleto de uma ironia conseguida desde o início, logo na escolha do título WILDE, que para além de nos reportar para a figura do autor em si, germina a imagem de uma mulher selvagem que apesar de tudo é, boa - (e que estranho conceito de bondade será este?).
                A peça Lady Windemere’s Fan: a play about a good woman, de Oscar Wilde estreou em 1882 no St. James Theatre, em Londres. Em Portugal, a peça estreou em 1922 sob o título O leque de Lady Margarida, numa encenação de Augusto de Lacerda para a Sociedade Artística. É uma peça cujo impacto histórico a precede tendo em conta a sátira à sociedade vitoriana que representa e que, a mala voadora conseguiu mais uma vez, recriar de um ponto de vista que se veste de cómico e ligeiro para falar a sério. De coisas importantes. De coisas perigosas. De gente grande. Fazendo-se de exemplo as questões de género que invadiram o palco quando a segunda personagem que entra é um homem de vestido, seguido por mais homens e mulheres de vestido, vestidos estes idênticos, homens e mulheres que José Capela – cenógrafo e figurinista neste projeto, decidiu vestir de igual lançando para o ar questões que para além de se enquadrarem na época vitoriana, se enquadram com a atual cena portuguesa. Sugerindo ao público que se questione: esta peça aplicar-se-ia a um homem da mesma forma que se pode aplicar a esta mulher? As questões morais sugeridas no texto sobre a dignidade e índole de uma mulher são diretamente proporcionais às que os mesmos conceitos morais levantam relativamente aos homens? E se estamos a vestir homens de mulheres numa reclamação por alguma forma de igualdade, parece, porque é que então os maiores e melhores papeis continuam a pertencer a homens e não sofrem igualmente uma distribuição justa entre os dois géneros?
                A mala voadora, Jorge Andrade – o encenador, e Miguel Pereira não se basearam, no entanto, na peça propriamente dita de Oscar Wilde, mas antes numa das suas versões: a produção radiofónica da BBC Radio 7 que cumpre, ao longo do espetáculo, tanto a função de didascália como de – dir-se-ia – coro, como de personagem. Surgindo inicialmente como introdução, informando o espetador – caso ainda restassem dúvidas – de que vai assistir à peça “Lady Windemere’s Fan: a play about a good woman”, durante, sobrepondo-se às vozes dos atores em palco enfatizando a repetição até ao cómico e no fim, sendo que WILDE culmina num Blackout total onde a única coisa que acontece é, mais uma vez, a repetição de uma voz com que, desde o inicio nos vimos a tentar relacionar. Um artifício, esta voz artificial, ausente, que invade a sala de espetáculos onde esperávamos presenciar cara-a-cara. Somos traídos pelas ilusões teatrais que a mala voada e M.P. tecem em torno desta narrativa de Lady Windemere e os seus pecados. Somos traídos pela própria folha de sala que nos apresenta a peça como teatro de repertório quando o que ela faz, na verdade, é crítica a repetição constante que as novas programações nos vão propondo com espetáculos que, diferente dos anteriores, só contém o título.
                Falam-se de questões morais, de culpas, de erros, de o quê e quem é legitimado para julgar ou perdoar, é um diálogo entre personagens, atores perdão, que em torno de uma mesa redonda de dimensões gigantescas que ocupa razoavelmente toda a esquerda de cena, tentam, acima de tudo, preservar o otimismo com que se encaram as situações complicadas, de crise – como aquela em que agora vemos o país mergulhado, um otimismo, nem que seja aparente. Como tão bem sugerem os morangos e os castiçais que enfeitam o cenário a um modo tanto teatral e ilusório quanto vitoriano.
                O curioso deste otimismo direcionado, sem dúvida, a Portugal, é que é narrado em vozes inglesas, não só na versão radiofónica como na presencial, pelos atores portugueses que compõem o elenco. Verdade seja dita – e discutível quando se fala de verdade numa critica a um espetáculo que narra a estória de uma mulher condenada por uma que é deduzida através de um leque – num inglês percetível, cuidado, e mostra de um esforço vocal acrescentado por parte dos intérpretes. Salvando a exceção de Miguel Pereira que, de braços dados com texto, e ainda para mais em inglês, interpreta uma Lady Windemere com dificuldades de dicção que, se começam por ser engraçadas terminam numa confusão do que se chamaria portinglês.
                Um bom espetáculo cómico, satirizante, ilusório, que procura fazer um elogio ao otimismo que, mesmo que fracassado, vale pelo esforço. Que abusa das mudanças de luz e condena qualquer movimentação cénica que tente ser coreográfica tanto pela sua desnecessidade como pelos figurinos pesados que impossibilitam qualquer movimento que queira parecer verdadeiro. Mas que, através das músicas que surgem em formato coral e ao vivo, das luzes que se vão acendendo e apagando, da voz off que invade o espaço não deixando que o espetador se esqueça de que está a assistir a teatro, consegue ser um excelente exemplo de
como podem as artes de espetáculo ser um pedaço de entusiasmo, despreocupação e leveza de espírito. No entanto, as escolhas cénicas e a relação atores e voz off da versão radiofónica deixam a desejar elevando o espetáculo a um ambiente ambíguo em que fica a nuance de crítica mas muito esbatida e a qualquer momento contra argumentada por uma fraca capacidade de transposição de ideias verbais para atos performativos.
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Maio de 2013 | Theatro Circo, Braga

Rosencrantz & Guildernstern estão mortos, de Marco Martins

À Espera de Desaparecer
TEATRO | Tatiana Rocha

Que seja ou não curioso que Gonçalo Waddington se tenha lesionado e consequentemente visto obrigado a representar de muletas quando Beckett, autor em quem Tom Stoppard se afirma ter inspirado para escrever Rosencrantz & Guildenstern estão mortos, criava personagens que, psicologicamente danificados, se apresentavam fisicamente incapacitados, deixarei ao vosso critério. No entanto, a intertextualidade entre a peça Rosencrantz & Guildenstern estão mortos e À Espera de Godot, de Beckett, é inegável. Rosencrantz e Guildenstern assemelham-se a Estrágon e Vladimir (ou ao contrário, talvez, quem sabe, eles também não sabem), de tantas formas que é difícil enumerar: os dois personagens à espera, sem saberem para onde vão o que vão fazer, sem se lembrarem de quem são nem de onde vieram, um a cabeça, o outro o coração, um o racional, o outro a impulsividade do sentir. Também eles estagnados num lugar que, geograficamente, tanto pode ser um limbo entre a vida e a morte, como uma última procura antes de desaparecer definitivamente - “Morrer é o fim definitivo, é desaparecer definitivamente”.
                Quando Tom Stoppard decidiu dar voz à estória das duas personagens de Hamlet fê-lo para que conhecêssemos as reflexões e questionamentos pessoais das duas num plano de metateatralidade que inquere a posição e a função do ator na representação. Isto, foi o que aconteceu palco tanto em 1966 em Edimburgo – data da sua estreia, como ontem em Guimarães pela encenação de Marco Martins.
                A peça inicia-se mesmo antes do público se ter sequer sentado nas cadeiras confortáveis do Centro Cultural Vila Flôr – onde permanecerá durante duas curtas horas e meia, in-média-rés dir-se-ia; estão todos os atores em palco no meio de pedaços de cenários inacabados: uma escada ali, umas quantas cadeiras espalhadas, o cabide com os figurinos a canto, biombos de madeira, grades que parecem aprisionar o passado de que Ros & Guil não conseguem recordar, uma trave a marcar uma diagonal que parece desenhar a evolução da ação até ao clímax – um autêntico caos, um palco despido que deixa ver as portas, os cabos, toda a teia de luzes descida, em suma, as mentes confusas de Rosencrantz e Guildenstern, perdidos da ação, perdidos deles próprios. Dois personagens que deixaram a ação passar sem a acompanharem, dois atores que não conseguem já encontrar as suas personagens (será por elas terem desaparecido?). É neste ambiente que se adivinha a dimensão metateatral da obra que Marco Martins muito bem soube explorar com atores que se preparam para começar, usando do palco como camarins, a meio de exercícios de aquecimento, ainda a vestirem-se e a trocarem de roupas enquanto outros estão já em personagem, a meio de diálogos, a treinar monólogos.
                Esta peça, que chega à cidade berço como parte da programação do Festival Gil Vicente, que até agora parece ser a única repercussão da Capital Europeia Da Cultura que aqui conheceu lugar no ano passado, tem um elenco composto por 20 atores, sendo que 6 deles são estudantes em formação da ESMAE. Elenco este que, não desiludindo Stoppard, é, nas palavras da personagem Ator interpretada por Bruno Nogueira, diferente das pessoas normais – apresentando um trabalho sólido, com tanto de qualidade técnica como de emotiva, de tal forma que a certa altura, quando Nuno Lopes (Guildenstern, ou será Rosencrantz?) se dirige a Gonçalo dizendo “já os estamos a cansar” a única reação é rir, porque de cansaço só o dos abdominais que já sofrem de tantas pequenas gargalhadas sucessivas que o público protagonizou, protagonizou sim, porque ele é parte integrante deste espetáculo já que, e como o Ator defende: sem público não há teatro.
                Um grupo de atores que, antes de o serem, são projeções sociais do que é ser ator, criticando a relação estabelecida entre o teatro e a prostituição – que durante tantos séculos acompanhou os profissionais das artes do espetáculo, debatendo-se com questões de género (homens que fazem de mulheres, mulheres que fazem de homens) numa peça em que os atores são maioritariamente masculinos - curiosamente, um grupo de atores que quer fazer teatro mas não encontra apoios para - numa metáfora e critica social que existe além-fronteiras, extravasando os limites da própria peça. Um espetáculo que se centra, contudo, e essencialmente na efemeridade que é a vida e a inevitabilidade que é a morte. Um espetáculo que Marco Martins traduziu de duas formas: tanto pelo texto que constantemente nos lembra da situação liminar em que Ros & Guil se encontram, como através dos atores que, em palco, se mostram ora próximos ora distantes deles próprios e das suas personagens, encurtando o abismo que há entre um e outro, e entre nós (público) e eles.
                Entre saltos da estória convencional de Hamlet - pontuada com uma iluminação fria, que conta com os monólogos sofridos da Cordélia de Joana de Verona – um tanto ou quanto vazia face ao brilhantismo que os outros protagonistas alcançam, e os diálogos amigáveis e informais de Ros & Guil – pontuados com uma iluminação mais geral e quente, que se aproxima das luzes de trabalho (denunciando também aqui a metateatralidade da obra), somos confrontados com a única certeza da vida: a de que vamos morrer um dia, inevitavelmente. Enquanto nos fazem pensar se acreditamos ou não no destino e quais são as nossas ferramentas para o alterar no limiar do que é real e representação colocando-nos sempre sobre o aviso de que acreditaremos sempre muito mais facilmente no ilusório: levantando a cortina daquela que é uma insinuação muito maior do que o teatro a que assistimos dentro daquela sala, transpondo aquelas palavras para as calçadas lá fora, para as casas e cozinhas que nos esperam. Para a vida. Da qual também nós, um dia, desapareceremos. E será que sabemos o que é que estamos ou temos a fazer até lá? Somos também nós condicionados por ordens régias ou diria, governamentais? Não nos devemos nós servir do exemplo de Ros & Guil e aprender a contrariar ditos imperativos que nos podem conduzir a um fim precoce?
                No final, a ovação foi de pé. E, pelo menos desta vez, muito bem justificada.
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Junho de 2013 | CCVF, Guimarães